Dizem os analistas políticos que uma liderança expoente no mundo precisa, invariavelmente, de sorte. E essa sina parece sempre acompanhar Lula. No comando do G20, se sua entrada não foi sorte – mas resultado de uma programação prévia – sua saída ao fim de novembro será.
Com o crescimento do trumpismo pelo globo e com as 20 maiores economias do mundo ainda decidindo como lidarão com a onda laranja, a saída de Lula da presidência do clube dos chefes de Estado das 20 mais poderosas economias do mundo pode evitar desconcertos diplomáticos, saias justas e até uma lateralização do papel do estadista no xadrez político global.
Em sua saída, no entanto, mais vitórias que derrotas. Embora o acordo de taxação dos super-ricos não tenha saído do papel, especialistas ouvidos pela reportagem apontam que a aliança contra a fome, a busca por resoluções climáticas e a inclusão da sociedade civil nas discussões da cúpula se sobrepuseram.
Para a professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ) e coordenadora do Observatório Político Sul-Americano, Marianna Albuquerque, o maior êxito de Lula foi a construção de uma agenda que tivesse engajamento da sociedade civil, uma estratégia que nenhum outro presidente do bloco adotou. “Foi um golaço ter colocado a sociedade civil e organizada para dentro de um sistema multilateral. Assim você amplifica o discurso que defende, e, de quebra, populariza a agenda”, afirmou ela.
Exemplo de tal envolvimento da sociedade civil foi a criação do G20 Favelas, que discutiu a economia sob a ótica de pessoas que nunca estiveram na mesa de conversa. O movimento também pôde ser visto nas redes sociais. A postagem da aliança contra a fome, por exemplo, teve um total de 4 milhões de curtidas e 1,8 milhão de comentários nas redes, quase quatro vezes mais do que o post mais curtido até então.
O conselheiro do Brasil na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Gerson Sodré, conta que a aliança contra a fome foi o projeto mais abrangente em adesão desde as campanhas contra a fome nos anos 1990 pela África. “Incitar apoio publicamente aumenta o comprometimento dos líderes, e isso é bom”, disse.
Foi por isso, inclusive, que tanto o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente da China, Xi Jinping, presentes à reunião que será realizada no Rio de Janeiro nestas segunda-feira e terça-feira, assinaram o termo, que já ultrapassou 35 assinaturas.
Segundo Marianna Albuquerque, outro assunto em voga, e que ganhou holofote sobre o comando de Lula, foi a chamada bioeconomia, termo que se popularizou dentro do clube dos 20 países mais ricos. Trata-se de uma vertente econômica que envolve inovações fundamentadas em recursos biológicos, que resultam no desenvolvimento de produtos, processos e serviços mais sustentáveis.
“Bioeconomia até então era um tópico que o G20 não trabalhava e que é muito importante para o Brasil controlar a narrativa, porque a gente está falando de patrimônio genético e repartição de acesso e o Brasil, tanto pelas florestas, quanto pelo oceano, precisa se resguardar em relação a isso”, disse. Na mesma linha, a agenda climática também foi alvo, pela primeira vez, de um encontro só com ministros da Fazenda.
Efeito Trump
Se, por um lado, o Brasil conseguiu firmar alguns pilares relevantes no comando do bloco, por outro, ainda é uma incógnita como agirá o grupo diante das opiniões contrárias de Trump a temas como crise climática, taxação dos super-ricos e bioeconomia.
E quem irá lidar com tal tensão será o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, que assume o posto de Lula no dia 1º de dezembro. Ele, no entanto, não possui a mesma relevância política do presidente brasileiro, o que pode fazer a agenda, como um todo, perder a força.
Dias antes do último encontro do G20 sob comando do Brasil, evento que acontece no Rio de Janeiro entre os dias 18 e 19 de novembro, Lula afirmou ter conversado com o presidente da África do Sul, e ele teria se mostrado muito aberto à agenda. “Temos visões de mundo parecidas, e prioridades como líder de países emergentes similares”, afirmou.
Para Otaviano Canuto, que foi presidente executivo do Banco Mundial, a passagem de bastão do Brasil para a África do Sul tem um grande simbolismo na ordem mundial, alternativa que está se criando no sul global. “Os dois países têm desempenhado papel importante no campo da diplomacia, especialmente no que se refere às críticas ao que Israel está promovendo no Oriente Médio. Acredito que o G20 ganha muito com essas duas presidências.”
Viria deste recurso também o financiamento de obras de reparo climático, em especial nos países mais pobres. Segundo estudo feito a pedido do Brasil pelo economista francês e autor da proposta Gabriel Zucma, com uma taxa de 2% seria possível arrecadar algo entre US$ 200 bilhões e US$ 250 bilhões anualmente.
Pontos de atenção
Se para o Brasil o saldo parece ser positivo no comando do G20, o mesmo não se pode afirmar do conjunto de países latino-americanos que integram o bloco. Hoje, Brasil, México e Argentina são os únicos que fazem parte do clubinho, mas ainda parecem colecionar mais pontos de discordância do que de convergência. “Isso impede que eles compactuem uma agenda única, em nome da região”, afirmou Marianna Albuquerque.
Mas isso pode mudar, justamente, pelo efeito Trump. Hoje, o México faz parte, junto aos Estados Unidos e Canadá, do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), de livre comércio na região. Se Trump fortalecer o discurso contra os latinos, e pressionar pelo fim dos acordos comerciais, talvez o México precise se reposicionar no bloco, e o Brasil viraria um caminho natural. Esse movimento, inclusive, se alinha às inclinações políticas de Claudia Sheinbaum, recém empossada presidente mexicana, que se opõe a Trump e se coloca como parte da esquerda progressista.
No caso da Argentina, o maior alinhamento de Javier Milei e Donald Trump pode até seduzir o argentino no começo, mas a tentativa de aproximação de seu país com a China logo pode esfriar a relação. Azar para uns. Sorte para outros.